Um blog coletivo sobre material impresso.

sexta-feira, março 30, 2007

A Bússola Dourada

A primeira referência a esse livro que eu vi foi numa lista sobre o George R.R. Martin onde os leitores estavam falando sobre o que eles estavam lendo enquanto roíam as unhas de ansiedade esperando o Dance With Dragons. Um deles mencionou essa série, His Dark Materials, cuja tradução literal seria a estranhice "Seus Materiais Escuros", mas aqui no Brasil foi lançado com um título mais "fantoche" de "Fronteiras do Universo". Aí uns meses depois descobri que este ano o primeiro livro, A Bússola Dourada, vai ser lançado como filme, com a Nicole Squidman e o James Blond como os tenebrosos (MESMO) vilões Mrs. Coulter e Lorde Asriel. Aliás chutei o balde completamente e resolvi decorar o artigo com algumas fotos de divulgação que já saíram do filme, e introduzir comentários sobre o mesmo. Bom, de qualquer forma, com a perspectiva do filme fiquei mais curioso ainda para ler essa série.




Um dos posters do filme vindouro baseado no livro.


Fui ler assim meio com o pé atrás com medo de ser algo tipo o Harry Potter (que gosto de ver em filme mas acho que não rolaria em livro). Mas agora que li posso dizer: é MUITO BOM MESMO - e tem pouco a ver com outras obras de fantasia. É uma espécie de romance familiar ao avesso, passado em uma Terra paralela demente, e misturando gêneros de ficção científica e fantasia com conceitos de metafísica, teologia e física quântica - um mexidão que teria tudo para desandar e ficar ridículo, mas que acabou ficando com uma ótima (e desconcertante) suspenção de descrença.




Lorde Asriel, o segundo vilão mais assustador do livro, no filme, interpretado pelo Daniel "007" Craig. Curiosamente, o autor Philip Pullman achava que o Lucius Malfoy daria um melhor Asriel, mas acho que não quiseram empregar o mesmo ator em dois filmes de fantasia "simultaneamente"...


Esse é um livro que realmente merece ser descoberto e assim não vou usar spoilers descarados como na maioria das minhas resenhas. Normalmente despejo spoilers descarados sem dó porque a maioria dos livros e filmes é bem previsível, então os spoilers não doem. Não é o caso do "His Dark Materials". Assim vou falar por alto, ainda que fale muito.




A horripilante "vilona" Mrs. Coulter. Esqueçam todas as bruxas de filme da Disney, esqueçam todas as vilãs detestáveis de novela das oito, esqueçam Mumm-Ra, a Fonte Eterna do Mal - Mrs. Coulter come todos eles no café da manhã, com leite e sucrilhos! Ah, essa foto é bem legal também para mostrar que a direção de arte do filme está se divertindo e fazendo um bom trabalho com a "defasagem temporal" que a realidade paralela do Bússola Dourada em vários aspectos tem em relação à nossa.


O filme se passa em uma versão paralela da Terra que a princípio parece mais ou menos normal, mas aos poucos vemos que é completamente insana. A história nesse mundo evoluiu de forma completamente diferente - por exemplo, a sede da Igreja Católica fica em Genebra, João Calvino foi um papa e aparentemente nunca ocorreu a Reforma Protestante. (!!!) Como conseqüência, as divisões e sistemas políticos são completamente diferentes, e vemos países malucos como a Ânglia do Leste, o Alto Brasil e o Texas. A ciência (ou o mais próximo dela) também evoluiu de forma assustadoramente estranha e ainda é chamada de Filosofia Natural, e existem coisas absurdas como laboratórios de "Teologia Experimental". (!!!) Suponho que os personagens estão no Século 21 como nós, mas nesse mundo louco a tecnologia deles parece uma coisa entre a Liga Extraordinária e Capitão Sky e o Mundo do Amanhã, com dirigíveis para todo lado e eletricidade pouco difundida. (Ainda que existam "ordenadores" que não sei se são eletrônicos.) Enfim, como em toda boa ficção científica de história alternativa, a cada página somos surpreendidos por mais uma revelação estarrecedora de como poderia ser a Terra se a História tivesse seguido um rumo ligeiramente diferente.




A heroína Lyra cara a cara com Mrs. Coulter.


Mas não pára por aí, porque vemos que a Evolução também seguiu um curso diferente nessa Terra. Existem mais duas espécies sapientes: as "bruxas", obviamente aparentadas com os humanos e que na verdade acho que não são uma espécie diferente, mas sim uma síndrome de origem hereditária que só afeta mulheres; e os (hiihihihihihi) Ursos Encouraçados, que são uma espécie totalmente diferente mesmo, ursões polares sapientes.

Mas também não pára por aí, porque... as próprias leis físicas nesse universo são um pouco diferentes. Aí é que entra a "magia" comum aos livros de fantasia, já que as leis físicas nesse universo parecem possibilitar fenômenos que para nós seriam sobrenaturais, mas que para os humanos de lá são a coisa mais natural do mundo. Minha impressão é de que, dentro daquela interpretação com sabor místico da Mecânica Quântica de que as consciências é que criam a realidade, o acoplamento entre mentes e realidade nesse outro universo é muito mais forte que no nosso.

Isso se manifesta de forma sistemática na vida de todas as pessoas, porque cada humano nasce com um "demon" - não sei como traduziram isso na edição em Português, mas vou traduzir como "capeta" mesmo - é uma palavra curta! Um capeta e seu humano são como duas expressões da mesma consciência: o humano é obviamente físico, enquanto o capeta parece ser alguma espécie de "projeção" da mente do humano. (Inclusive até certo ponto partilhando pensamentos, emoções e mesmo sentidos.) Um indício da não-materialidade dos capetas é: os mesmos podem mudar de forma (assumindo formas de praticamente qualquer animal - mamíferos, répteis, pássaros, insetos) enquanto a pessoa ainda é criança, mas após a puberdade assumem uma forma fixa, e viram uma espécie de "totem" do que é a verdadeira personalidade da pessoa. Por exemplo, numa manifestação social curiosa disso, todos os serviçais têm capetas com a forma de cachorros de variados tipos.

A presença dos capetas pessoais, e a implicação de que os humanos desse mundo são seres dois-em-um, traz profundas diferenças na psicologia dos personagens, que acaba não sendo muito... humana. Por exemplo eles não conseguem sequer conceber o conceito de solidão, e quando tentam parece a coisa mais aterradora que se possa imaginar. E toda a questão da ligação entre os capetinhas e seus humanos é central para o desenvolvimento do livro (e dos personagens), mas aqui já vou entrar em detalhes pantanosos envolvendo spoilers e acho melhor parar.

Só mais um comentário sem vazar detalhes do livro. Parece que essa série é marqueteada para crianças, mas de jeito nenhum achei o livro infantil. Um livro realmente infantil (como "O Hobbit", por exemplo) não conseguiria despertar em mim medo abjeto pelo que vai acontecer com os personagens, como ocorreu em certas partes do Bússola Dourada. O caso é que o autor, o Philipp Pullman, conseguiu manipular certos sentimentos humanos bem primais usando metáforas. E fico com a suspeita de que o livro pode ser lido em duas camadas, sendo que uma delas os adultos enxergam muito bem e as crianças apenas vislumbram...

5 comentários:

muriloq disse...

Muito legal a sua resenha, Dr.Omni. Estou com os audiobooks da série completa aqui, estão bem próximos na fila. :-)

Dr. Omni disse...

Brigado, Murilo! Por falar nisso recebeu o convite direitinho?

Ah, e aproveitando a ocasião... Errata: soltei uma gafe geográfica nesse post. A "East Anglia" de que falam em certa parte do livro não é uma "Inglaterra Ocidental" como eu pensei na hora, mas sim uma região da Inglaterra "de verdade". Mea culpa, mea maxima culpa!

Dr. Omni disse...

Errata da errata: "East Anglia" seria "Inglaterra Oriental"! 8-P

Lia disse...

Oi, cai aqui procurando exatamente um comentário como o seu...
O que considero legal é esclarecer sobre os 'daemon'. Camille Paglia tem uma boa explicação a respeito, em Personas Sexuais (se não me engano), onde ela comenta que o daemon é o lado obscuro que todo ser humano possui. Mais tarde, isso foi manipulado pela igreja católica para criar os demônios como os conhecemos...
Enfim, dá papo pra mais de metro. ;-)

Anônimo disse...

qual é mesmo o nome do livro ?

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