livro*log

Um blog coletivo sobre material impresso.

terça-feira, janeiro 08, 2008

The Grays





Há alguns meses descobri que a Siciliano do Diamond Mall, aqui perto de casa, tem uma estante razoavelmente grande de pocket books importados, de fato grande o suficiente para ser possível achar uns dois ou três livros de ficção científica (e um ou outro gênero que pode me interessar, como ficção histórica) lá no meio. Aí tenho comprado livros "na sorte" por lá. É uma das poucas coisas que um apreciador de certos gêneros pode fazer para sobreviver aqui no Brasil - onde ficção científica em Português ocupa meia prateleira de uma livraria imensa como a Siciliano, e todos os livros são de autores clássicos de 50 anos atrás, sem nada de novo. A outra coisa que eu poderia fazer seria finalmente arranjar um handheld para ler ebooks, o que provavelmente vai acontecer em um futuro próximo.

Mas, enquanto eu não transcendo a matéria, o "método da sorte" me fez ler pocket books tanto horrivelmente ruins (como o Kris Longknife - Resolute) como muito bons (como o Imperium). E agora um ÓTIMO, o "The Grays"!

Quando vi a capa incrivelmente CHEESY acima, com um alien de olhos esbugalhados meio fora de foco e enevoado, e a tagline mais CHEEEEEEEESY ainda de "*eles* já estão aqui", pensei: "GENTE!!! Esse é o livro com que sempre sonhei, a minha vida inteira!!!" e comprei na hora. E não me desapontei!!!

"The Grays" reviveu para mim aquele maravilhoso subgênero do cinema/TV de ficção científica do começo dos anos 90, o "filme de Zuiudos" (assim chamada, por mim pelo menos, por causa dos aliens de olhos imensos, óbvio), que produziu filmes surreais como o Communion e outros toscos, mas inesquecíveis, como o Intruders. Aliás vou usar fotinhas desse crássico antológico do cinema-zuiudo, o "Intruders" para decorar este post. Na TV, a "ficção científica zuiuda" gerou o Arquivo X e sua versão pobre muito pouco conhecida (mas com Zuiudos muito mais explícitos, sem aquele mostra-não-mostra do Arquivo X que eventualmente encheu o saco), o Dark Skies, que era uma espécie de versão ufológica do Forrest Gump.





(Em tempo, o nome técnico desse tipo de alien baixinho, esquelético, cabeça imensa e olhos pretos imensos esbugalhados é "Grey", ou "Cinzento", mas acho "Zuiudo" um termo muito mais descritivo. De fato, se lançarem uma tradução desse livro aqui no Brasil, sugiro que traduzam como "Os Zuiudos".)





Pois bem, "The Grays" é um mexidão deliciosamente saboroso de todos os elementos, clichês e chavões da Ficção Científica Zuiuda, virando automaticamente um clássico e uma obra antológica do gênero. Alguns exemplos desses elementos presentes no livro:





- *Eles*, o grupo de humanos que esconde toda a Verdade sobre os aliens e funciona como um governo paralelo dos Estados Unidos.
- Civilizações humanas avançadíssimas no passado remoto, a la "Stargate" e "Eram os Deuses Astronautas".
- Vítimas de abdução que aos poucos vão descobrindo que são - sempre foram, aliás - parte de um Grande Plano.
- Falando em Grandes Planos, existe também um, uh, "messias" que pode ser a danação ou a salvação da Humanidade, dependendo do ponto de vista.
- Falando em messias, existe também o alien bonzinho que vem orientar os humanos ignorantes acerca do terríiiiivel destino que os aguarda.
- Tecnologia copiada de aliens e, ah, já ia me esquecendo, também de nazistas. A propósito, o tecnobabble do livro é interessantíssimo, porque usa desde conceitos de FC do Século XIX, como a "cavorita", até elementos de pós-humanismo, trans-humanismo e Singularitarianismo, como por exemplo viagem interestelar feita só com transmissão de informação.





Porém, por incrível que pareça, "The Greys" não é divertido só por causa da amálgama bem-sucedida de clichês. Na verdade, me arrisco a dizer que é um livro BOM MESMO, sob vários aspectos, por estranho que possa parecer! Vejamos pontos de escrita que realmente me impressionaram muito bem:





- Os Zuiudos de início soam como coisas terrivelmente alienígenas, mentes estranhas incompreensíveis - e aterradoras - para humanos. Mas, há medida que alguns humanos vão ficando mais, uh, íntimos dessas criaturas, o leitor vai tendo uma visão cada vez mais antropomorfizada das mesmas, e os Greys passam de monstrinhos horríveis para, de certa forma, "pessoas".

- Os personagens humanos soam MUITO reais, com preocupações e sentimentos MUITO mundanos mesmo quando se percebem em situações extraordinárias. Isso dá a eles tridimensionalidade e uma curiosa suspensão da descrença na ótica dos personagens.

- É o tipo de livro "magnético", que não deixa você desgrudar da leitura, folhetinescamente mantendo o leitor grudado no texto querendo saber o que vai acontecer. Eu lia igual um idiota, sorrindo e com os olhinhos brilhando. Meu único senão nesse aspecto é que acho que o clímax se arrasta demais, incluindo aí um "pós-climax" que achei desnecessário.





Enfim, achei um livro ÓOOOOOTIMO, e aguardo ansiosamente agora a continuação 2012: O Ano em Que nos Foderemos di Cum Força! Ah, e aguardo também o *filme* The Grays - de fato, a Sony comprou os direitos de filmagem do Strieber em 2006, antes do "The Greys" ficar pronto.

segunda-feira, julho 30, 2007

28 Weeks Later (Extermínio 2)

Como essa é uma resenha de filme, não livro, ela foi transferida para o filme*log.

Vejo vocês por lá!

quinta-feira, julho 12, 2007

Iron Sunrise




A capa bonitinha (ainda que feijão-com-arroz) deste livro o torna um exemplo clássico da regra "não julgue um livro pela capa".


Este livro é MUITO RUIM. Pronto, vou falar de uma vez logo no começo.

O que não é a mesma coisa que dizer que é TODO ruim. Algumas coisas ficaram legais: por exemplo, o Charles Stross inventa um universo ficcional que é um híbrido de space opera clássica com ficção científica pós-humanista, e que é criado de uma forma *muito* bacana.

Mas, porém e todavia, na hora de inventar os personagens o Stross DESTRÓI COMPLETAMENTE o livro porque usa o mais clichê dos clichês, e da forma mais grotescamente clichê do mundo, em toda a história. (Noto que usei a palavra "clichê" três vezes na mesma sentença, mas mesmo assim está me parecendo pouco.) A impressão que se tem é a de que, indeciso sobre como fazer os vilões do livro, ele foi a uma Loja de Clichês próxima (vai ver existe uma franquia assim na Inglaterra!) e o seguinte diálogo aconteceu:

STROSS: Moço, eu preciso de vilões que pareçam terríveis no meu livro, mas não consigo espirrar nenhuma idéia que preste.

VENDEDOR: Ora, você não precisa de uma idéia que preste para vilões. Use clichês!

STROSS: Qual clichê o senhor indica para a maioria dos leitores odiarem muito, muito, muito os vilões?

VENDEDOR: É fácil! Escreva seu livro ambientado na Segunda Guerra e faça os vilões serem nazistas! Inclusive, se seu livro for transformado em filme no futuro, facilmente ganhará um Oscar!

STROSS: Uh... mas meu livro é ambientado séculos ou milênios no futuro, e em vários planetas...

VENDEDOR: É mesmo? Que estranho. Bom, então use... NAZISTAS ESPACIAIS!

E sim, os vilões do Iron Sunrise são... Nazistas espaciais. Note que não estou dizendo que os vilões têm alguns elementos levemente inspirados nos nazistas, como em Star Wars, onde o capacete do Darth Vader lembra um pouco o de um soldado nazista. Não, eu estou dizendo que os Nazistas Espaciais do Stross SÃO nazistas. Vejam só o "vetor de características" das figuras, indo das características mais genéricas e aceitáveis para as mais específicas e ridículas:

- Os Nazistas Espaciais são racistas e acreditam que são o Povo Eleito dono por direito do universo. (Infelizmente, este item aqui se aplica a muuuita gente mesmo, não só nazistas...)

- Os Nazistas Espaciais praticam genocídio.

- Os Nazistas Espaciais praticam eugenia.

- Os Nazistas Espaciais homens são altos, bombados, louros e de olhos claros, enquanto as mulheres são lindas, altas, louras e de olhos claros. Em suma, arianésimos.

- Os Nazistas Espaciais têm nomes germânicos do tipo U. Hoescht e U. Franz, onde o "U" é de "Übermensch", que entre eles é usado como um pronome de tratamento. (Este item me pareceu especialmente fedido não só pela especificidade extrema, mas também porque parece que o Stross está igualando alemães a nazistas. Tipo... Pelo que já notei isso é uma atitude comum entre os João-Seis-Breja de países vencedores da Segunda Guerra - deve ser brainwashing de décadas de filmes de propaganda de "como o lado 'bonzinho' venceu a guerra". Mas esperava mais do Stross - que é Inglês.)

Como se vê, sim, o Stross simplesmente transplantou nazistas da Segunda Guerra para um futuro de space opera, e aparentemente espera que isso seja visto como "desenvolvimento de personagens" e "worldbuilding".

É bom ressaltar que não estou dizendo que transposições literais não funcionam e pronto. Alguns exemplos de transposições literais que funcionaram: no 1984 o Orwell quase que literalmente transplantou o Stalinismo para a Inglaterra ; no Battlestar Galactica reimaginado o Estados Unidos (e talvez o mundo como um todo) é quase literalmente transplantado para as 12 Colônias; e no Lenda dos Heróis Galácticos o império prussiano e transplantado também para um contexto de space opera de forma quase literal também. Nesses casos bem sucedidos, porém, o autor claramente fez essa opção ou para falar de seu próprio mundo ou por razões estéticas. Já no caso dos Nazistas Espaciais do Stross, dá para notar que é porque o Stross estava com absoluta preguiça de pensar minimamente nos vilões mesmo.

Aliás, os vilões não são o único problema. A heroína também é completamente chupada, mas desta vez daquele subgênero do fim dos anos 80/começo dos 90, o cyberpunk. Pegando referências visuais de filmes com elementos de cyberpunk, a heroína é uma espécie de versão aborrescente da Trinity ou da Motoko, com direito a pele branquíssima, óculos escuros e roupinha de couro. Bleh...

De qualquer forma, este artigo falando mal de um livro do Stross talvez seja "chutar cachorro morto". Recentemente o Stross cometeu suicídio profissional na sua até então promissora carreira de escrtior bestseller de ficção científica, ao escrever em seu blog que, depois de ler e reler para ter certeza de que o que eu estava lendo não era uma alucinação minha, vi que podia mesmo ser resumido a:http://www.blogger.com/img/gl.link.gif


Colonização do espaço é inviável com a tecnologia atual. Logo, vê-se claramente que colonização do espaço nunca, jamais acontecerá, já que como todos sabemos tecnologia nunca, jamais avança. E mesmo se avançasse não existem pessoas querendo sair da Terra, e nem nunca existirão. Mas enquanto ainda existem trouxas que não enxergam essas verdades matemáticas fundamentais do universo, vou ganhar dinheiro em cima deles escrevendo historinhas que alimentam essa fantasia delirante.


Ao que só posso concluir que o Stross (a) pirou ou (b) já que estamos falando de FC, foi substituído por um clone saído de uma vagem alienígena, igual em "Invasion of the Body Snatchers". Bom, no caso de (a), espero que os anos enganando os trouxas tenham dado dimdim suficiente para a medicação e internação psiquiátricas! De qualquer forma, talvez isso explique porque uma space opera como o Iron Sunrise saiu tão ruim - deve ser análogo a um cético fundamentalista escrevendo sobre hostes celestiais de anjos, ou um espírita escrevendo sobre como a mente é só um epifenômeno da atividade cerebral e portanto esse negócio de alma não existe...

sexta-feira, junho 29, 2007

A Faca Sutil

Terminei de ler o "The Subtle Knife", o segundo livro da trilogia "His Dark Materials" (ou "A Faca Sutil" da trilogia "Fronteiras do Universo", na versão brasileira) que comentei anteriormente aqui neste blog. Seguindo a "tradição" inaugurada no post do livro anterior, vou decorar este aqui com imagens, uh, não tão relacionadas assim com uma crítica literária, mais especificamente com screenshots comentados do trailer do A Bússola Dourada, que saiu acho que um ou dois meses atrás.




O close do "aletiômetro", o instrumento para (hihihihihi) ler a Verdade, logo no começo do trailer. Conforme se vê claramente, essa interface antediluviana de ponteiros apontando para ícones não é lá muito amigável.


Minha impressão geral do "The Subtle Knife" é: meh... Lá vão os defeitos que mudaram minha opinião de "SHOW!" no caso do primeiro livro para um mero "Meh" no segundo:




Acima e abaixo, o visual dementésimo da Londres alternativa da historinha, que me surpreendeu: eu imaginava os elementos mezzo-steampunk, mezzo-dieselpunk (como o dirigível), mas não imaginava o ar ligeiramente... nova-iorquino! E o legal é que faz todo o sentido: ao que parece, na realidade alternativa do livro o Estados Unidos nunca chegou a se formar como nós o conhecemos e virar uma hiperpotência hegemônica, e a Inglaterra é a dona do mundo até hoje. Então porque não incrementar o visual dessa Londres com elementos da "capital" do nosso mundo, Nova Iorque?




Primeiro, o Pullman enrola demais. Acho que até o primeiro terço o livro é *muito* interessante, e retoma fôlego no finzinho. Mas entre essas partes é um saaaaaaco arrastado. Quase tive a impressão de que o Pullman queria porque queria fazer uma trilogia, e em vez de fundir os livros 2 e 3 optou por encher lingüiça. Afinal, "trilogia" soa melhor que "bilogia", e vende mais livros! :)




A Eva Green de bruxa. Sim, elas são um dos elementos fantásticos delirantes do livro, e sim, elas voam, desde que estejam segurando um ramo de pinheiro. (WTF?!?)


Segundo, o problema da suspenção da descrença. No primeiro livro o Pullman teve a manha de fazer uma suspensão da descrença boa o suficiente para que o leitor (ao menos este leitor aqui) "aceitasse" na boa um mundo com ursos polares falantes, mulheres hiperlongevas voadoras, e (hihihihihihihihi) pessoas permanentemente acompanhadas por materializações zoomórficas de suas almas. Já nesse segundo livro as novas "coisas que não existem" - como facas capazes de cortar portais interdimensionais no ar (e pessoas capazes de fechá-los pegando as bordas com a ponta dos dedos!), fantasmas comedores de almas e (HIHIHIHIHIHIHIHI) anjos de Matéria Escura - vão aparecendo de supetão, sem qualquer preparo prévio do leitor. Fiquei com a impressão de que o Pullman escreveu com uma atitude de "Vejam! Chutei o balde! Vou escrever qualquer demência que me vier à cabeça na hora e do jeito que quiser, sem medo de ser feliz!".




Ainda outro elemento delirante: nessa realidade paralela os ursos polares são sapientes e têm uma metalurgia avançadíssima, inclusive usando armaduras feitas artesanalmente.


Tirando isso, o "The Subtle Knife" *tem* momentos geniais, interessantes e que me deixaram "meditabundo". Por isso minha classificação é um "meh", e não um "bleh"!




O elemento delirante em cima do qual a maioria das metáforas psicológicas do livro é feito, os "daemons", as materializações totêmicas das almas das pessoas. O daemon menorzinho na fota é de uma criança e ainda tem o poder de morfar em vários bichos (e tirei um snapshot no meio do morphing), enquanto a onça é de um adulto e tem forma fixa.


Ah, e um pequeno adendo sobre o filme/série de filmes que vai estreiar em breve. Li que, afim de pasteurizarem a historinha para o enorme público carola dos Estados Unidos, todas as referências a Deus e à Religião foram tiradas do filme. Isso é meio triste porque um dos momentos mais brilhantes do "A Bússola Dourada" lida com religião (e, é verdade, de um jeito que ia fazer o carola médio, como diria o Scott Adams, cuspir o próprio crânio fora). Porém, o Pullman declarou que essa censura não é prejudicial à história como um todo, porque é mais uma história de autoritarismo versus liberdade. E, depois desse segundo livro, tenho de concordar. Portanto, devo aguentar o provável artifício do filme, que vai ser sempre se referir a um misterioso e tenebroso vilão que nunca aparece, "A Autoridade" (nome que de fato é freqüentemente usado no livro), sem deixar claro que "A Autoridade" é Deus!




Finalmente, um livro descrevendo uma realidade alternativa maluca tem mais graça se existir a possibilidade fictícia dessa realidade maluca entrar em contato com a nossa. Daí a existência de (hihihihihihihih) máquinas capazes de abrir portais interdimensionais.

segunda-feira, abril 02, 2007

Um Estudo em Esmeralda



"A Study in Emerald" é um conto do Neil Gaiman (autor dos insuperáveis Sandman e Deuses Americanos) que junta a mitologia de O Chamado de Cthulhu, de H.P. Lovecraft, com as aventuras de Sherlock Holmes. Ele ganhou o prêmio Hugo de melhor conto em 2004, e foi recentemente publicado na coletânea Fragile Things. O título é uma referência a Um Estudo em Vermelho, de Sir Arthur Conan Doyle, a primeira história de Sherlock Holmes, e apareceu na coletânea Shadows over Baker Street.

O próprio Gaiman comenta que achou difícil misturar a racionalidade das histórias de Holmes com o terror atávico e esotérico de Lovecraft. A saída para esse dilema é deliciosa, reminiscente de outros pastiches como o excelente As Aventuras da Liga Extraordinária, do genial Alan Moore (que foi travestido em uma desgraça lastimável nos cinemas). Quem se interessou pela combinação de universos ficcionais pode também conferir Sherlock Holmes: The Awakened, um adventure game para PC com o mesmo tema.

O conto fascina tanto os que temem a volta dos Old Ones quanto pelos admiradores do detetive de Baker Street. :-) Particularmente interessante é o audiobook, lido pelo próprio autor, cujo acentuado sotaque britânico não poderia ser mais adequado à história. A entrada na Wikipedia sobre o conto dá alguns detalhes que podem passar desapercebidos pelo leitor mais desatento, também (contém spoilers).

O texto integral (cinco capítulos) do conto está disponível no site oficial do autor: http://www.neilgaiman.com/exclusive/StudyinEmerald.asp .

Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'nagl fhtagn

sexta-feira, março 30, 2007

A Bússola Dourada

A primeira referência a esse livro que eu vi foi numa lista sobre o George R.R. Martin onde os leitores estavam falando sobre o que eles estavam lendo enquanto roíam as unhas de ansiedade esperando o Dance With Dragons. Um deles mencionou essa série, His Dark Materials, cuja tradução literal seria a estranhice "Seus Materiais Escuros", mas aqui no Brasil foi lançado com um título mais "fantoche" de "Fronteiras do Universo". Aí uns meses depois descobri que este ano o primeiro livro, A Bússola Dourada, vai ser lançado como filme, com a Nicole Squidman e o James Blond como os tenebrosos (MESMO) vilões Mrs. Coulter e Lorde Asriel. Aliás chutei o balde completamente e resolvi decorar o artigo com algumas fotos de divulgação que já saíram do filme, e introduzir comentários sobre o mesmo. Bom, de qualquer forma, com a perspectiva do filme fiquei mais curioso ainda para ler essa série.




Um dos posters do filme vindouro baseado no livro.


Fui ler assim meio com o pé atrás com medo de ser algo tipo o Harry Potter (que gosto de ver em filme mas acho que não rolaria em livro). Mas agora que li posso dizer: é MUITO BOM MESMO - e tem pouco a ver com outras obras de fantasia. É uma espécie de romance familiar ao avesso, passado em uma Terra paralela demente, e misturando gêneros de ficção científica e fantasia com conceitos de metafísica, teologia e física quântica - um mexidão que teria tudo para desandar e ficar ridículo, mas que acabou ficando com uma ótima (e desconcertante) suspenção de descrença.




Lorde Asriel, o segundo vilão mais assustador do livro, no filme, interpretado pelo Daniel "007" Craig. Curiosamente, o autor Philip Pullman achava que o Lucius Malfoy daria um melhor Asriel, mas acho que não quiseram empregar o mesmo ator em dois filmes de fantasia "simultaneamente"...


Esse é um livro que realmente merece ser descoberto e assim não vou usar spoilers descarados como na maioria das minhas resenhas. Normalmente despejo spoilers descarados sem dó porque a maioria dos livros e filmes é bem previsível, então os spoilers não doem. Não é o caso do "His Dark Materials". Assim vou falar por alto, ainda que fale muito.




A horripilante "vilona" Mrs. Coulter. Esqueçam todas as bruxas de filme da Disney, esqueçam todas as vilãs detestáveis de novela das oito, esqueçam Mumm-Ra, a Fonte Eterna do Mal - Mrs. Coulter come todos eles no café da manhã, com leite e sucrilhos! Ah, essa foto é bem legal também para mostrar que a direção de arte do filme está se divertindo e fazendo um bom trabalho com a "defasagem temporal" que a realidade paralela do Bússola Dourada em vários aspectos tem em relação à nossa.


O filme se passa em uma versão paralela da Terra que a princípio parece mais ou menos normal, mas aos poucos vemos que é completamente insana. A história nesse mundo evoluiu de forma completamente diferente - por exemplo, a sede da Igreja Católica fica em Genebra, João Calvino foi um papa e aparentemente nunca ocorreu a Reforma Protestante. (!!!) Como conseqüência, as divisões e sistemas políticos são completamente diferentes, e vemos países malucos como a Ânglia do Leste, o Alto Brasil e o Texas. A ciência (ou o mais próximo dela) também evoluiu de forma assustadoramente estranha e ainda é chamada de Filosofia Natural, e existem coisas absurdas como laboratórios de "Teologia Experimental". (!!!) Suponho que os personagens estão no Século 21 como nós, mas nesse mundo louco a tecnologia deles parece uma coisa entre a Liga Extraordinária e Capitão Sky e o Mundo do Amanhã, com dirigíveis para todo lado e eletricidade pouco difundida. (Ainda que existam "ordenadores" que não sei se são eletrônicos.) Enfim, como em toda boa ficção científica de história alternativa, a cada página somos surpreendidos por mais uma revelação estarrecedora de como poderia ser a Terra se a História tivesse seguido um rumo ligeiramente diferente.




A heroína Lyra cara a cara com Mrs. Coulter.


Mas não pára por aí, porque vemos que a Evolução também seguiu um curso diferente nessa Terra. Existem mais duas espécies sapientes: as "bruxas", obviamente aparentadas com os humanos e que na verdade acho que não são uma espécie diferente, mas sim uma síndrome de origem hereditária que só afeta mulheres; e os (hiihihihihihi) Ursos Encouraçados, que são uma espécie totalmente diferente mesmo, ursões polares sapientes.

Mas também não pára por aí, porque... as próprias leis físicas nesse universo são um pouco diferentes. Aí é que entra a "magia" comum aos livros de fantasia, já que as leis físicas nesse universo parecem possibilitar fenômenos que para nós seriam sobrenaturais, mas que para os humanos de lá são a coisa mais natural do mundo. Minha impressão é de que, dentro daquela interpretação com sabor místico da Mecânica Quântica de que as consciências é que criam a realidade, o acoplamento entre mentes e realidade nesse outro universo é muito mais forte que no nosso.

Isso se manifesta de forma sistemática na vida de todas as pessoas, porque cada humano nasce com um "demon" - não sei como traduziram isso na edição em Português, mas vou traduzir como "capeta" mesmo - é uma palavra curta! Um capeta e seu humano são como duas expressões da mesma consciência: o humano é obviamente físico, enquanto o capeta parece ser alguma espécie de "projeção" da mente do humano. (Inclusive até certo ponto partilhando pensamentos, emoções e mesmo sentidos.) Um indício da não-materialidade dos capetas é: os mesmos podem mudar de forma (assumindo formas de praticamente qualquer animal - mamíferos, répteis, pássaros, insetos) enquanto a pessoa ainda é criança, mas após a puberdade assumem uma forma fixa, e viram uma espécie de "totem" do que é a verdadeira personalidade da pessoa. Por exemplo, numa manifestação social curiosa disso, todos os serviçais têm capetas com a forma de cachorros de variados tipos.

A presença dos capetas pessoais, e a implicação de que os humanos desse mundo são seres dois-em-um, traz profundas diferenças na psicologia dos personagens, que acaba não sendo muito... humana. Por exemplo eles não conseguem sequer conceber o conceito de solidão, e quando tentam parece a coisa mais aterradora que se possa imaginar. E toda a questão da ligação entre os capetinhas e seus humanos é central para o desenvolvimento do livro (e dos personagens), mas aqui já vou entrar em detalhes pantanosos envolvendo spoilers e acho melhor parar.

Só mais um comentário sem vazar detalhes do livro. Parece que essa série é marqueteada para crianças, mas de jeito nenhum achei o livro infantil. Um livro realmente infantil (como "O Hobbit", por exemplo) não conseguiria despertar em mim medo abjeto pelo que vai acontecer com os personagens, como ocorreu em certas partes do Bússola Dourada. O caso é que o autor, o Philipp Pullman, conseguiu manipular certos sentimentos humanos bem primais usando metáforas. E fico com a suspeita de que o livro pode ser lido em duas camadas, sendo que uma delas os adultos enxergam muito bem e as crianças apenas vislumbram...

sábado, outubro 14, 2006

Spin

Animado por uma crítica bem positiva de Darwinia publicada pelo Omnilândia, resolvi ler Spin, do Robert Charles Wilson, ganhador do Hugo Award de melhor romance este ano. Não é um livro perfeito, mas é compulsivamente devorável: 450 páginas que voam a uma velocidade vertiginosa, de se virar as páginas sem ligar para o nascer do Sol, e pela perspectiva de um dia arruinado pelo sono.

A resenha do Publishers Weekly, que geralmente conta a história do livro inteira (não leiam), categoriza Spin como uma mistura de thriller de ficção científica, tenra história de amor, conflito entre pai e filho, parábola ecológica e fábula apocalíptica. É basicamente isso, mas eu acrescentaria um elemento de thriller político, ainda que discreto. Se for partir para as categorias típicas de ficção científica, é mais ou menos uma história de primeiro contato, e tematicamente uma exploração da insignificância do ser humano diante da magnitude do universo. Trivial, em se tratando de ficção científica. Mas funciona tão bem, e tem umas idéias tão interessantes, que é difícil não se sentir engolido pelo livro.

A estrutura é organizada em torno de uma dicotomia microcosmo/macrocosmo, com o microcosmo sendo um drama familiar envolvendo três personagens, e o macrocosmo constituindo, efetivamente, o núcleo de ficção científica da história. Wilson vai arremessando o leitor de um para o outro, buscando uma síntese que, suspeita-se de início, não vai ocorrer. Mas ocorre. O final poderia não ter vindo e tudo poderia ter ficado sem explicação. Ao final, entretanto, apesar de não se saber com muitos detalhes de algumas particularidades dos eventos ocorridos, sabe-se perfeitamente o aconteceu. O que irá acontecer, e o significado mais profundo de tudo (com o macrocosmo se transformando em um possível microcosmo), já fogem ao alcance do livro. Não importa, não é o propósito de Wilson. Pode-se dizer que o livro seja um grande set-up, um trabalho muito bem-feito de world-building para fundamentar outras obras. No fundo é isso mesmo, já que Axis, próximo livro de Wilson, será situado no mesmo universo (talvez seja necessário escrever universo em maiúsculas, UNIVERSO). Mas é um livro que se sustenta sozinho, e que não exige futuros desenvolvimentos. O estrago já está feito, no bom sentido.

A idéia inicial é a seguinte: a Terra foi envolta por uma barreira, que bloqueia a luz das estrelas e da lua, subitamente desaparecidas certa noite de outubro, no futuro próximo. Não exatamente uma barreira, descobre-se eventualmente de que se trata de uma membrana, bastante seletiva quanto ao que pode entrar e sair da Terra. Meteoritos não entram, mas foguetes podem sair e entrar. O Sol continua nascendo e se pondo, mas não é exatamente o Sol. É luz solar manipulada, de modo a constituir um Sol artificial. A vida continua na Terra, mas não como antes: dentro da membrana, o tempo passa muito mais vagarosamente do que fora. No interior do fenômeno que passa a ser chamado de “Spin”, cada segundo equivale a 3.17 anos no exterior. Um dia chegará em que a expansão do Sol atingirá a Terra, e não haverá membrana que impedirá que os oceanos evaporem e que a humanidade seja aniquilada.

Essa é uma das últimas gerações na Terra. Tudo vai terminar em mais ou menos 30 e poucos anos. Diante do quadro de extinção inevitável, alguns abraçam o niilismo, outros se ancoram em cultos que fazem reinterpretações religiosas do Spin, ou simplesmente entram em um estado de torpor. Os três personagens principais do livro, Tyler Dupree e os gêmeos Jason e Diane Lawton, testemunham a cobertura da Terra pelo Spin no início da adolescência, e dedicam suas vidas, daquele momento em diante, ao fenômeno.

Jason, criança prodígio sufocada pelo pai dominador, cresce e passa a comandar o projeto Perihelion, iniciativa americana de investigação do Spin. Diane se envolve com um culto cristão e se abandona ao fanatismo religioso. Tyler vira médico, uma profissão talvez inútil diante do fim que se aproxima, e conta a história em primeira pessoa.

Tudo revolve em torno da tentativa desesperada do Perihelion em terraformar Marte, colocando o planeta em um estado de ecopoiese. Resumindo, o objetivo é criar uma civilização em Marte, de descendência humana. Como os anos se passam muito mais rapidamente fora do Spin, anos terrestres equivalendo a bilhões de anos no espaço, é possível construir uma civilização milenar como se brincando de SimLife. A esperança é a de que os futuros marcianos possam contribuir para compreensão do que o Spin significa, e talvez à salvação da humanidade.

Diversas teorias são traçadas. Algumas pessoas dizem que o Spin é obra de Deus. Outras preferem apostar em uma inteligência alienígena, os Hypotheticals, aliens hipotéticos cujas intenções podem ou não ser benevolentes. O drama de Jason Lawton é saber o que significa tudo isso antes de morrer. Nada pior, para ele, do que morrer sem saber o que houve.

Diane, por outro lado, talvez acredite ou não na doutrina de um dos vários cultos pelos quais acaba passando. Mas seja como for, distancia-se de Tyler, em relação ao qual nutre um amor secreto plenamente correspondido, mas por motivos não muito simples, difícil de ser concretizado. Tyler mantém laços com Jason e se envolve no Perihelion, mas sempre perturbado com a ausência de Diane, a quem revê apenas em alguns momentos decisivos.

Jogando com esses três personagens, Tyler narrando a história em dois planos temporais, Wilson constrói um drama delicado, que é tão significativo e interessante quanto a ficção científica hard que o acompanha. Afinal, há um grande evento misterioso, inúmeras possibilidades que desafiam as expectativas da humanidade enquanto ser biológico pensante, mas a vida continua, mesmo com a perspectiva de um fim que concretamente se aproxima. A questão é a de se acomodar o cenário apocalíptico a cosmovisões pessoais, e tocar a coisa para a frente ou terminar com tudo de alguma maneira.

No final de 450 páginas, tanta coisa aconteceu, e tanta coisa mudou, em escala tão espantosa, que o drama dessas três personagens poderia parecer irrelevante. Mas não é, e tudo o que aconteceu, tudo o que mudou, deixa várias respostas quanto à extensão do universo e as possibilidades de vida em outros cantos menos explorados do espaço, mas nada em concreto quanto ao significado da vida, se é que ela tem algum significado. Por mais que conheçamos, e por mais que nossas possibilidades se ampliem, o mistério continua o mesmo, e a frustração talvez seja maior. No final, os personagens se vêem tocados por uma mistura de deslumbramento e dor, e o leitor agradece a viagem, meio chateado de saber até menos, se sentindo mais insignificante ainda.

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Leia os primeiros oito capítulos do livro aqui.

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